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Dois lados da mesma moeda: Blockchain, Ética e Direitos Humanos

As tecnologias da blockchain são uma ferramenta poderosa que tem muitos usos além do financeiro e das criptomoedas.

Como qualquer outra tecnologia poderosa, seu impacto social depende em grande parte de como é usado.

Embora existam centenas de iniciativas utilizando a blockchain destinadas ao bem social, poucos empresários, críticos ou acadêmicos voltaram a sua atenção para os aspectos éticos dessas tecnologias promissoras.

Argumentamos que muitos benefícios podem ser alcançados pela colaboração entre as comunidades da ética, dos direitos humanos e da blockchain.

Não apenas as tecnologias blockchain podem ser usadas para promover causas éticas e de direitos humanos; lições da ética e dos direitos humanos também podem ser usadas para entender os principais problemas da indústria de blockchain.

A Blockchain é, para muitas pessoas, sinônimo de criptomoedas e aplicativos financeiros. No entanto, os recursos que tornam as tecnologias da blockchain tão atraentes para o gerenciamento de ativos e transações monetárias - transparência, resistência a adulterações, eficiência e contratos inteligentes, só para citar alguns dos recursos - também são úteis em áreas que têm pouco a ver com finanças.

No trabalho como bioeticista, busco por soluções - sejam filosóficas ou tecnológicas - a novos problemas ou os já conhecidos que afetam a todos nós. Ao ler mais sobre o blockchain, comecei a perceber que ela tem um enorme potencial como ferramenta para o bem comum. Infelizmente, não se escreveu muito sobre a conexão entre tecnologias da blockchain, a ética e os direitos humanos. Juntamente com meu colega Max Schmid, decidi não só analisar se a blockchain poderia ajudar as boas causas, mas também se as lições da ética poderiam beneficiar a comunidade blockchain como um todo.

Quando iniciamos nossa pesquisa com essa ideia, nos deparamos com vários exemplos de projetos de blockchain sendo usados para promover os direitos humanos. Em um exemplo, a ONU, em parceria com a empresa de blockchain Aid: Tech, rastreou o fluxo de refugiados através de zonas de conflito. Em outro projeto, o Programa Mundial de Alimentos da ONU forneceu aos refugiados no Paquistão e na Jordânia uma moeda digital que só pode ser resgatada pelo indivíduo pré-definido (blockchain pela fome zero). De fato, a Stanford divulgou recentemente um estudo de 193 iniciativas de blockchain destinadas ao impacto social.

Por isso, ficamos surpresos ao encontrar também dois artigos recentes dos ganhadores do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz e Paul Krugman, alegando que todo o ecossistema do bitcoin é inútil ou imoral. E estes não são homens de pouca inteligência. Stiglitz, em particular, tem sido um herói meu desde 1997, quando identificou o conhecimento como um bem público global. Então, o que há de tão errado no bitcoin, que irritou tanto esses brilhantes economistas?

Stiglitz (economista ganhador do Nobel: as autoridades vão 'destruir' o bitcoin) parece acreditar que a única vantagem real do bitcoin é seu sigilo. Ele assumiu ainda que o sigilo sempre é procurado por razões nefastas - digamos, lavagem de dinheiro ou contratação de pistoleiros. À medida que o bitcoin se torna cada vez mais conhecido e os abusos se tornam o alvo da regulamentação, Stiglitz concluiu que o valor agregado do bitcoin seria regulado e deixaria de existir.

Escrevendo ao New York Times, Krugman (Bolha, Bolha, Fraude e Problemas) listou pela primeira vez uma série de dúvidas econômicas mais comuns sobre o bitcoin: sua volatilidade, as poucas lojas que o aceitam e a falta de um fiador como o padrão ouro ou o Banco Central. Ele então compara o bitcoin a "Benjamins" ou notas de cem dólares: popular entre ladrões, traficantes de drogas e evasores fiscais. O Bitcoin, na visão de Krugman, é uma bolha gigante que estourará, e quanto mais cedo isso acontecer, melhor. Mas foi um artigo anterior a este com um título irreverente que é relevante para nós hoje. Ele é curto e muito simples: "Bitcoin é Mau".

Tecnologia e ética

O que significa dizer que uma tecnologia é má? De acordo com os argumentos de Krugman, é fácil perceber: o bitcoin é usado exclusivamente para atos que são imorais; devido a isso, o bitcoin é mau. Como argumento ético, isso é intencionalmente ignorante; você não precisa de um Prêmio Nobel para encontrar exemplos de blockchain sendo usados para o bem social. Mas, curiosamente, este padrão de pensamento - que o bitcoin é mau porque traz consequências ruins - é um exemplo de uma teoria moral legítima conhecida como conseqüencialismo. Se Krugman estava argumentando ao longo da teoria consequencialista, seu erro está em desconsiderar os aspectos positivos do bitcoin e no fracasso em tornar explícita a suposição desse quadro ético.

Intrigados, começamos a procurar nas bases de dados acadêmicas por quadros éticos aplicados à blockchain, mas não encontramos nada. No entanto, continuamos a encontrar controvérsias em torno de alguns casos de uso da blockchain que dependiam implicitamente das estruturas éticas que os filósofos desenvolveram ao longo de milhares de anos.

Peguemos como exemplo o debate sobre os hard forks do bitcoin, e do bitcoin cash. Devido ao aumento do volume de transações e o tamanho limitado dos blocos, aqueles que desejam garantir uma transação em menos tempo tiveram que incluir uma taxa de mineração maior. Da mesma forma, o poder de voto estava cada vez mais concentrado em alguns grandes players. Esses desenvolvimentos significaram que alguns, devido a ter mais recursos, eram privilegiados em relação a outros - o que era uma das questões principais que o bitcoin deveria abordar. A ideia de que o poder deve ser distribuído, que as preferências de uma pessoa não devem contar, nem mais, nem menos, do que a de outra pessoa, é conhecida na ética como igualdade. É diferente no tipo da abordagem que identificamos no pensamento de Krugman, porque coloca o valor moral na igualdade dos indivíduos, independentemente de isso levar às melhores consequências.

Outros exemplos em que questões éticas foram levantadas incluem o uso de energia do protocolo de prova de trabalho (proof-of-work), a ausência quase que completa de minorias na indústria e tentativas do governo de restringir ou regular aspectos do uso da blockchain.

Em cada um desses casos, o tipo de raciocínio em que estamos envolvidos é essencialmente ético. A ética é o estudo formal de como escolher o melhor caminho a seguir quando se possui várias opções. Talvez mais importante, quando pensamos sobre ética e direitos humanos, estamos em melhor posição de identificar as áreas onde as tecnologias da blockchain podem ser usadas para tornar o mundo um lugar melhor.

A ética acadêmica é dividida em quatro disciplinas, do abstrato ao concreto. De um lado está a ética descritiva, que tenta descrever o que as pessoas realmente pensam sobre ética e como isso se relaciona com diferentes culturas e contextos. Em um nível mais abstrato, a ética normativa lida com o que as pessoas podem ou deveriam pensar sobre ética, independentemente do que as pessoas realmente pensam. Mais abstrato ainda, a meta-ética é o estudo dos próprios conceitos éticos; por exemplo, se a intuição é a base apropriada para argumentos morais, ou se os fatos morais existem independentemente dos humanos.

O mais interessante para nós, a ética aplicada, é a aplicação das outras três disciplinas às questões do mundo real. A ética aplicada baseia-se em princípios normativos e, por isso, precisamos entender as principais ideias em ética normativa.

Ética normativa

A ética normativa tem uma longa história; mas apenas algumas teorias resistiram ao tempo. Essas teorias procuram estabelecer uma estrutura que possa ser usada para determinar se uma ação é moralmente certa ou errada. Para analisar isso, as teorias dão foco a um ou mais princípios fundamentais contra os quais as ações são julgadas.

Nós já nos deparamos com um destes princípios anteriormente. O consequencialismo sustenta que o que distingue uma boa ou má ação são suas conseqüências. A versão mais conhecida do consequencialismo é o utilitarismo, que foi desenvolvido pela primeira vez de forma moderna por dois excêntricos ingleses nos séculos XVIII e XIX.

O primeiro é o Jeremy Bentham, que argumentou que a coisa ética a se fazer é aquela que produz a maior felicidade para o maior número de pessoas. Essa ideia é conhecida como o princípio da utilidade. Por felicidade, Bentham assume como sendo a soma total de prazer, de todas as formas, menos dor, de qualquer tipo. Bentham argumentou que nada mais importa moralmente - que tudo o que mais valorizamos, digamos, honestidade ou amizade, é bom apenas na medida em que produz prazer ou reduz a dor.

Nesta visão, não importa quem está experimentando o prazer ou a dor; a experiência de qualquer um, rei ou pobre, não é mais ou menos importante que a de outro, uma ideia que poderíamos chamar de princípio da igualdade.

Bentham achava que a única diferença relevante entre os prazeres é sua intensidade e duração. Em outras palavras, se alguém recebe mais prazer da pornografia, digamos, do que ler Shakespeare, então é muito pior para Shakespeare. Foi esse aspecto de sua filosofia que o afilhado de Bentham, John Stuart Mill, mostrou-se contra.

Mill propôs que alguns prazeres valem mais do que outros; nenhuma quantidade, digamos, de prazer perverso do assassinato, poderia corresponder a um prazer maior, como a alta literatura.

O utilitarismo é a justificativa por trás de idéias como a análise de custo-benefício e a triagem médica. Essa teoria tem milhares de críticas. Talvez a mais devastadora seja a percepção de que ela parece justificar ações que consideramos intuitivamente erradas. De um ponto de vista utilitário, o problema com o assassinato, a mentira ou o adultério é que eles geralmente levam a mais miséria do que utilidade, não que esses atos sejam inerentemente errados. Se não houvesse outras consequências - o que, é claro, sempre haverá - então um utilitarista consistente deveria estar disposto a matar uma pessoa para salvar outras duas. Também parece pedir muito de nós - provavelmente, haveria felicidade média maior se doássemos nossos bitcoins - ou, assim como Robin Hood, os bitcoins de outras pessoas.

São essas conclusões desagradáveis que motivam outra teoria normativa, a deontologia, que sustenta que o princípio ético final é dever, e não utilidade. O autor mais famoso da deontologia é Immanuel Kant, um contemporâneo de Bentham.

A filosofia de Kant é notoriamente difícil de seguir, mas em essência, ele argumentou que, como criaturas racionais, os humanos têm uma responsabilidade, um dever, de agir de acordo com a razão autônoma, o tipo de razão que deriva da liberdade da vontade.

Kant pensava que a capacidade dos seres humanos de raciocinar e agir livremente nos dá um status único, que ele chamava de dignidade. Esse conceito é de suma importância para a filosofia de Kant, pois ele argumenta que a dignidade tem importância primordial e deve ser respeitada, tanto a nossa como também a dos outros.

A partir dessa ideia de autonomia, Kant derivou leis morais. O mais famoso deles chamou o imperativo categórico, uma forma da qual afirma que devemos tratar os outros nunca apenas como um meio para um fim, mas sempre também como um fim em si mesmos. Em outras palavras, nunca devemos usar os outros contra a sua vontade, nem mesmo para fazer um grande bem, porque isso não respeita a sua autonomia e, por extensão, a sua dignidade.

Nesse momento, Kant não disse que as conseqüências não importam. Ele apenas pensou que onde a utilidade e o imperativo categórico entram em conflito, o imperativo sempre vence. Isso leva a algumas conclusões trágicas. A conclusão mais famosa é que, ele pensou que seria imoral mentir para um possível assassino sobre a localização de sua vítima.

O princípio condutor da deontologia é o dever. Desde Kant, muitos filósofos aceitaram essa ideia básica, mas produziram sistemas de deveres muito diferentes dos dele. A ideia comum aqui é que precisamos de algum tipo de restrição à maximização pura da utilidade, para proteger as pessoas e coisas que valorizamos.

Direitos Humanos

Uma dessas ideias são os direitos humanos. O conceito aqui é que a dignidade de cada ser humano lhes concede certos direitos, independentemente de quem são ou de onde nasceram. Esta ideia, de que os direitos se aplicam a todos em todos os lugares, é conhecida como o princípio da universalidade.

A verdadeira lista dos direitos produzidos - a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 - foi o resultado do que provavelmente é o maior levantamento já feito de filósofos, acadêmicos e outros intelectuais. Toda a literatura existente, todas as constituições, todos os documentos de direitos e várias centenas de eminentes pensadores de todo o mundo foram consultados. Surpreendentemente, praticamente todos os envolvidos concordaram com os pontos principais, com a controvérsia geralmente centrada nos detalhes.

Os direitos humanos possuem para nós, uma importância central, não apenas porque são juridicamente vinculativos, mas também porque abrangem muitos aspectos da vida para os quais a blockchain pode realmente fazer a diferença.

Filosoficamente, os direitos humanos são baseados em princípios fundamentais, que são derivados da dignidade. Estas são participação e inclusão; universalidade, igualdade e não discriminação; inalienabilidade, indivisibilidade e responsabilização.

Quando os direitos entram em conflito, os governos devem avaliar a importância relativa das diferentes reivindicações de direitos em um processo bastante semelhante ao cálculo utilitário. O sistema de direitos humanos, portanto, apresenta alguns dos pontos fortes de todas as principais teorias normativas - o utilitarismo, que dá foco às conseqüências, e a deontologia que possui o foco em direitos e deveres, mas também na virtude da ética, que coloca ênfase na pessoa ou agente, em seu caráter em vez de suas ações.

A virtude refere-se a um conjunto de traços de caráter que, coletivamente, contribuem para uma boa pessoa. Uma virtude é uma disposição persistente e confiável de agir e sentir-se, de certo modo, moralmente bem. Em outras palavras, uma virtude é aquela que faz alguém se comportar de uma maneira caracteristicamente boa. A ética da virtude foi desenvolvida por Platão, Aristóteles, Mêncio e Confúcio; as teorias ainda discutidas hoje estão diretamente associadas a Aristóteles.

Na minha opinião, a principal percepção de Aristóteles é que podemos e devemos treinar essas virtudes para adquiri-las. "A virtude moral surge como resultado do hábito", escreveu ele em Ética a Nicômaco. "Nós nos tornamos os atos que fazemos, somos moderados fazendo atos moderados, somos corajosos fazendo atos corajosos." Para fazer a coisa certa, devemos também praticar nossas virtudes até que fazer a coisa certa se torne parte de nós, tão automático quanto escovar nossos dentes ou dirigir um carro.

Embora essas teorias - utilitarismo, deontologia, direitos humanos e ética das virtudes - pareçam muito diferentes umas das outras, elas compartilham um número surpreendente de princípios. Todas as quatro ideologias concordam com a importância fundamental e igualdade de cada indivíduo. Em segundo lugar, eles são todos universais, ou seja, seus princípios se aplicam a todos os humanos em todos os lugares. Em terceiro lugar, todos eles reconhecem que a utilidade é importante; onde direitos, deveres e virtudes não proíbem uma série de ações, a melhor opção é a que gera mais utilidade.

Além disso, os direitos humanos, a deontologia e a ética da virtude reconhecem explicitamente a necessidade de algum tipo de restrição à pura análise de custo-benefício. Mesmo algumas formas de utilitarismo sustentam que, para maximizar a utilidade, é melhor seguir certas regras, de modo que não acabamos tendo que calcular o futuro com demasiada frequência ou cometer muitos erros; essas regras se parecem muito com as restrições impostas por direitos e deveres.

Finalmente, todos os quatro se concentram no desenvolvimento: os direitos humanos refletem as capacidades e condições necessárias para viver uma vida plena, como a educação, a saúde, o ambiente propício para tal e a segurança; pessoas que têm essas condições também são capazes de gerar mais utilidade e podem praticar mais facilmente as virtudes.

Esses cinco princípios - universalidade, igualdade, utilidade, restrições e desenvolvimento - formam a base para um arcabouço de ética na indústria da blockchain, porque eles são apoiados por todas as três principais teorias normativas, e porque são respaldados pelos princípios legais e do peso simbólico dos direitos humanos.

Construir tal estrutura em todos os detalhes necessários não será uma tarefa fácil. Podemos começar a esquematizá-lo juntos, observando que três princípios são fundamentais e axiomáticos: utilidade, isto é, trazer o máximo de benefícios possível; e fazê-lo de uma maneira que trate todos os humanos em todos os lugares como tendo igual valor moral, em outras palavras, universalidade e igualdade. Mas, para evitar a exploração, e a fim de respeitar as pessoas como pessoas, em vez de objetos ou peões, precisamos ter uma camada de direitos e deveres que restrinja o raciocínio utilitarista puro.

Esses direitos incluirão os direitos humanos, mas podem incluir outros, porque o mundo é diferente agora do que aquele que estava acontecendo setenta anos atrás, e porque todos os campos precisam de códigos de conduta profissionais especializados. Finalmente, um foco importante de ações deve ser os conceitos de virtude e de desenvolvimento humano e ambiental, porque é mais provável que isso traga utilidade e respeito pelos direitos e deveres.

Como nossa jovem estrutura pode ser na prática? Algo assim:

Primeiro, esclarecer a questão.

Em seguida, avalie a utilidade de várias opções.

Considere se a(s) opção(ões) com mais utilidade violam os direitos dos outros.

Se os direitos em questão não forem absolutos, determine se o utilitário é grande o suficiente para compensá-los.

Escolha a(s) opção(ões) com a maior utilidade entre aquelas que não estão restritas ou superadas por direitos e deveres.

Sempre que possível, concentre-se no desenvolvimento e na virtude.

Embora isso pareça simples, cada uma dessas etapas envolve algumas perguntas difíceis. A primeira etapa visa identificar o que está em jogo e o que é importante em um problema. A segunda etapa envolve a ponderação dos custos e benefícios de diferentes opções. Isso raramente pode ser feito utilizando-se apenas do sentido matemático estrito, mas muitas vezes é incontroverso que algumas opções sejam inferiores às outras, e muitas vezes a melhor maneira de escolher entre as opções mais próximas será discuti-las abertamente.

Os próximos passos envolvem identificar direitos conflitantes e pesá-los; muitas vezes, diferentes direitos serão afetados, não importa o que seja feito, e então é a importância relativa e o grau de impacto sobre os direitos que será o fator decisivo. Por fim, muitas vezes, faz mais sentido preferir as opções que contribuem para o desenvolvimento humano e ambiental, porque investir nos seres humanos e nos ambientes que eles precisam para desenvolver plenamente provou, ao longo da história, ser o melhor investimento para a humanidade como um todo.

É claro que muitos detalhes precisam ser preenchidos, mas algo assim poderia formar a base para um código de conduta ético e para uma estrutura normativa prática na esfera blockchain.

Alguns exemplos

Podemos testar o framework testando-o contra algumas críticas comumente ouvidas da blockchain. Por exemplo, às vezes as pessoas falam que as blockchains de prova de trabalho são antiéticas porque contribuem para a degradação ambiental. Esclarecendo a questão, perguntamos se os benefícios do protocolo de prova de trabalho superam os custos em energia, mas também se existe uma maneira melhor de atingir o mesmo objetivo.

Para responder à primeira pergunta, observamos que permitir que muito mais indivíduos participem do compartilhamento global de valor e informação é um dos maiores benefícios que podemos imaginar, porque permite um maior desenvolvimento para mais pessoas e muito provavelmente supera outros usos para aquela energia.

A segunda questão é menos óbvia. O protocolo de prova de trabalho levou ao surgimento de conglomerados de mineração (pools de mineração), que podem exercer influência excessiva sobre o desenvolvimento futuro. Ao mesmo tempo, muitos recursos computacionais valiosos estão entrando em um trabalho que é, por definição, arbitrário. Uma maneira de atacar esse problema é ganhos de eficiência, como a Lightning Network e um melhor hardware de mineração. Outra é reaproveitar o trabalho feito para torná-lo útil; por exemplo, o CureCoin utiliza um esquema no qual o trabalho é direcionado à modelagem da estrutura de proteínas para pesquisas na área de saúde. Uma terceira opção seria abandonar completamente a prova de trabalho, passando para outra estrutura de incentivos, como a prova de participação (proof of stake). Cada uma dessas alternativas deve ser cuidadosamente estudada para prever seu provável impacto. Como os direitos dos outros não são muito afetados, essa questão se transforma em um cálculo utilitário.

Uma segunda questão importante é a relativa ausência de minorias. Dependendo da pesquisa (por exemplo, os dados mostram que as mulheres estão sub-representadas na Blockchain e nas criptomoedas), apenas 7-15% das pessoas na indústria da blockchain são do sexo feminino, e menos ainda são minorias étnicas. Esclarecendo a questão, podemos perguntar quais são as barreiras de entrada e o que podemos fazer a respeito. Um culpado óbvio é a discriminação. Isso pode existir em sua forma aberta, mas suspeitamos que o viés inconsciente seja o mais comum. Torna-se ainda mais importante prestar atenção a essas dinâmicas ao considerar novos empreendimentos ou contratações, especialmente porque essa é uma área na qual os direitos das pessoas à igualdade estão em jogo. Outro fator é a relativa desvantagem de mulheres e minorias em obter as habilidades técnicas necessárias. Para sanar estes problemas, temos algumas iniciativas, como as convenções de treinamento do MIT Media Lab para mulheres e minorias, ou ainda possuir bolsas de estudo. Esta é uma questão em que as análises utilitarista e deontológica concordam: respeitando os direitos de igualdade das mulheres e das minorias, garantindo que o conjunto de talentos disponível se expandirá maciçamente.

Finalmente, uma questão fundamental é a regulação na esfera blockchain. Esclarecendo essa questão, podemos perguntar primeiro se faz sentido ter algum regulamento e, em caso afirmativo, quanto e de que tipo.

Embora esta seja uma questão muito controversa, podemos começar observando que alguns países e até cidades estão começando a implementar regulamentações rudimentares sem a devida análise técnica. A China, por exemplo, proibiu as corretoras de operarem e baniu as ICOs. Por outro lado, o Japão e a Suíça conseguiram atrair alguns projetos em blockchain devido a um ambiente regulatório favorável. Nova York emitiu seu BitLicense, e Delaware e Estônia permitem que você registre remotamente às empresas que utilizam blockchain.

Em segundo lugar, consideramos que as regulamentações emergentes devem beneficiar a todos em todos os lugares, em vez de beneficiar apenas alguns grupos. Sabemos, por exemplo, que as curvas de mercado podem ser excessivas e que os grandes participantes financeiros podem ter um impacto desproporcional. Só haverão regulamentações que funcionam para todos, se forem abertos à comunidade para análise e comentários. Assim, há um argumento ético de que os órgãos reguladores devem incluir e acolher a participação das partes afetadas da comunidade na elaboração das regulamentações.

Entretanto, como é muito improvável que isso aconteça, outro caminho é a autorregulação. Muitas áreas de pesquisa acadêmica, por exemplo, salientam que a própria Internet, é regulada principalmente por representantes das comunidades relevantes. Esses órgãos criaram códigos de conduta e ética profissional que não são sustentados por ameaças de força, mas, no entanto, são razoavelmente bem-sucedidos. Fazer um esforço concentrado nesta área poderia ajudar a reduzir a percepção da necessidade de regulamentação externa.

A Blockchain pela ética e direitos humanos

Até agora nos concentramos na aplicação da ética e dos direitos humanos à blockchain. No entanto, o relacionamento é uma via de mão dupla - a aplicação da blockchain às causas éticas e de direitos humanos - é talvez ainda mais importante. Em 2015, 193 dos 195 países do mundo adotaram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Estas 17 metas refletem alguns dos problemas humanitários e éticos mais urgentes no mundo.

As estratégias para atingir esses objetivos envolvem a transferência e distribuição de grandes volumes de valor e informação, o rastreamento e a identificação de um vasto número de pessoas, dados e bens e a coordenação de esforços e recursos entre os setores público, privado e civil que exige confiança, transparência e responsabilidade. Além disso, esses esforços são cronicamente insuficientes e não possuem recursos em comparação à magnitude dos problemas para os quais foram projetados.

Além disso, o desenvolvimento duradouro exige muitas possibilidades de instituições e infraestrutura que nós tomamos como garantidas, mas muitas vezes faltam onde elas são mais necessárias. Elas incluem o acesso a serviços financeiros, escrituras de terras e títulos, sistemas jurídicos eficazes e documentos como certidões de nascimento e casamento, registros de saúde e prova de identidade.

Nesse contexto, o potencial das tecnologias blockchain para permitir transações seguras, rápidas, confiáveis e rastreáveis de valores são extremamente úteis.

Por exemplo, o Programa Mundial de Alimentos da ONU, que alimenta mais de 100 milhões de pessoas em 80 países, já economizou milhões de dólares em transferências bancárias. Plataformas como BitSpark e BitPesa aumentam significativamente a eficiência das remessas, que formam uma parte vital da economia em países que sofrem de instabilidade política ou inflação descontrolada. E no mundo da conservação da natureza, a União Internacional para a Conservação da Natureza está planejando usar as tecnologias da blockchain para reduzir os custos gerais, melhorar a transparência e permitir doações diretas para projetos individuais (Fair Finance for Effective Conservation).

Outros projetos usam a blockchain para rastrear a cadeia de suprimentos e as origens dos produtos. A Everledger acompanha o progresso dos diamantes das minas até o consumidor final, ajudando a impedir a exploração inerente ao comércio de diamantes de sangue. A Provenance rastreia a propagação de peixes e outros produtos através da cadeia de fornecimento, permitindo a análise das alegações de sustentabilidade e a vigilância da contaminação pela saúde pública. O Wal-Mart (Walmart implementa o blockchain da IBM para rastreabilidade de alimentos) e a Maersk (IBM, Maersk cria joint venture de blockchain com foco em trocas globais) estão procurando estabelecer programas similares.

A ONU e a ID2020 pretendem fornecer identidades digitais a refugiados e outros necessitados, um pré-requisito fundamental para muitas funções sociais. Em Gana, a Bitland uniu-se ao governo para fornecer registros digitais de terras e escrituras, garantindo um registro permanente e auditável. Em parceria com o governo sul-africano, o Projeto Amply construiu um sistema de identidade digital e gestão de subsídios na blockchain para crianças em idade escolar.

Cada vez mais, a ciência e a medicina estão buscando soluções com a blockchain (por exemplo, a tecnologia blockchain para melhorar a qualidade da pesquisa clínica). O compartilhamento de dados médicos sensíveis e científicos, valiosos e identificáveis sempre foi problemático. As tecnologias Blockchain poderiam permitir o compartilhamento seguro de dados e a agregação em um nível nunca antes visto, facilitando assim o progresso da medicina. O mesmo se aplica às possibilidades de vigilância pós-comercialização de novos medicamentos e dispositivos médicos. Iniciativas como a SolarCoin buscam incentivar a produção de bens sociais, neste caso, a energia solar.

Embora a tecnologia ainda tenha menos de uma década, esses exemplos dão uma ideia do impacto potencial que as tecnologias da blockchain poderiam ter para tornar o mundo um lugar melhor. Mas, como todas as tecnologias, seu impacto depende de como é usado. Portanto, é hora de começar a reflexão e a discussão das melhores maneiras de assegurar que seu potencial seja realizado para o bem.

Sobre os autores

Sebastian Porsdam Mann é um bioeticista nas Universidades de Oxford e Copenhagen. Ele é bacharel e doutor em filosofia, neurociência e neuroética pela Universidade de Cambridge e trabalhou anteriormente como pesquisador na Faculdade de Medicina de Harvard.

Max Schmid é formado pelas faculdades de Munique e da IE Business School. Ele atualmente gerencia A&BC Consulting (anbc.live), que ele e Mann criaram.

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